Quando chega a Quaresma, surge sempre uma dúvida. Para que é que servem exatamente as penitências? É por deixarmos de comer o alimento A ou B, de ir ou não ver um espetáculo que ficamos mais próximos de Cristo?
Práticas penitenciais ou dimensão penitencial. Poderíamos usar aqui muitas expressões para falar daquilo que é no fundo uma prática, um hábito, um estilo de vida que os católicos são convidados a viver durante a Quaresma.
Porque a Quaresma, assim dizemos, é um tempo penitencial. E portanto se é um tempo penitencial, sugere-nos uma vida com sinais de penitências. E não raras vezes associamos as penitências a uma privação.
À pergunta comum, “se eu deixar de comer o alimento A ou B ou não ir ver um espetáculo, ou seja, privar-me de alguma coisa, será que fico mais próximo de Cristo?” Vamos olhar um bocadinho para isto e perceber este sentido e perceber o lugar destas práticas penitenciais. Quando falamos de penitências, podemos associar a várias coisas. Podemos associar de facto a um exercício de algo na nossa vida doloroso, difícil, exigente, que muitas vezes está associado efetivamente a eu propor-me a mim próprio algo que vá fora daquilo que é a minha rotina e com um caráter de exigência.
Normalmente é assim um bocadinho esta configuração. Ou então também às vezes associamos ao sacramento da confissão. Porquê? Porque tem associado a si como conclusão do próprio sacramento uma penitência que a pessoa que se confessa deve cumprir. E que normalmente também está associado a algum ato.
Ora bem, então vamos olhar para isto. Penitência ou uma ação com caráter penitencial?
Efetivamente, e isto é muito importante todos percebermos e, fica aqui a resposta muito direta. A penitência nunca é um fim em si própria. Portanto, eu não faço uma penitência ou não tenho um ato, um gesto penitencial por causa da penitência em si. Mas por aquilo que eu posso alcançar através dessa penitência.
E essa dimensão penitencial pode ter a ver com, ou deve ter sempre a ver, com uma certa reconfiguração de mim próprio. Ou seja, quase que uma regeneração espiritual e humana em mim. Ou seja, a dimensão penitencial procura refazer-me, procura curar-me.
Não é por acaso que nós chamamos às prisões estabelecimentos penitenciários. É verdade. Porque também têm associado esta dimensão penitencial.
Ou seja, um lugar de cura, um lugar penitencial com uma sugestão de cura, onde aquela pessoa que efetivamente, por alguma razão na sua vida, teve algo menos positivo, mas que aquele tempo seja também um tempo de recuperação da pessoa. E assim o desejamos que as nossas prisões recuperem as pessoas para a sua vida. Porque é esse sempre o objetivo. Uma dimensão curativa, uma dimensão quase como um hospital humano. E também a penitência deve ter sempre este objetivo.
Portanto a penitência não é um fim em si próprio, é um meio pelo qual eu me reconfiguro, eu me aproximo, não no sentido de proximidade física, mas no sentido de me afeiçoar, de me incorporar mais na pessoa do próprio Cristo. E aí sim, eu fico mais próximo de Cristo, de facto, quando eu tenho uma ação penitencial na minha vida, eu, afastando-me de coisas, se calhar, mais temporais, mais materiais, eu posso me abeirar mais daquela prática que Cristo praticava.
Porque é que muitas vezes, por exemplo, nas práticas penitenciais da Quaresma, onde está, por exemplo, a questão do jejum e da esmola. Normalmente nós, quando fazemos jejum, não é só para nos privarmos de alguma coisa. E o Papa disse isto agora recentemente.
É para que quando esse jejum, esse privar-nos de alguma coisa, leva-nos a um exercício de atenção ao outro e de caridade para com o outro, transformando aquilo que eu me privo em generosidade e em caridade e em esmola, eu ajudo o outro. E, portanto, a dimensão penitencial não tem apenas um fim em si próprio, mas é um meio pelo qual eu vivo uma vida também mais austera, mais simples, mais humilde, e transformo isso em gesto de atenção e de caridade àquele que mais precisa. Ou seja, numa atitude também de amor.
Recentemente falava da questão do amor e do amor enquanto oferta de si próprio, enquanto oblação, enquanto entrega. Também aqui esse amor se manifesta. E por isso é que a dimensão penitencial procura sempre esta configuração a Cristo.
Mesmo quando eu às vezes faço um sacrifício. Dou o exemplo do despertador. Às vezes tenho que pôr dois ou três toques de despertador para conseguir abrir bem os olhos e levantar-me da cama. Eu ponho dois, mas é por hábito.
Mas, por exemplo, aquela ousadia, aquela virtude do despertador toca e eu levanto-me imediatamente da cama, que é uma coisa difícil às vezes. Às vezes esse pequeno gesto penitencial, de esforço pessoal, leva-me a uma disciplina de vida, leva-me a não me deixar levar pela preguiça, leva-me até se calhar a cumprir melhor os meus horários, leva-me a ter uma vida mais exigente também. E isso aproxima-me mais de Deus.
Porquê? Porque é uma vida mais virtuosa. É uma vida de maior domínio sobre mim próprio e sobre as coisas da natureza humana, afeiçoando-me assim àquilo que é a verdade. E isso faz todo sentido também relativamente às renúncias quaresmais, porque o que acontece muitas vezes é eu não vou gastar, não vou consumir isto ou aquilo, é a minha penitência, mas esse valor monetário eu vou usar para a minha renúncia quaresmal.
O Papa também disse, que o nosso jejum se transforme também em dar alimento ao outro. Ou seja, que não seja apenas uma privação e assim até poupo uns trocos. Não.
Mas que isso se torne de facto em generosidade. E que a nossa renúncia quaresmal não seja apenas olha, renúncia, deixei cá a ver, então se calhar até vou aqui dar 10 euros ou 20 euros e fico com a minha consciência tranquila. Quer dizer, não é mau, é bom, é melhor que nada.
Mas se esses 10 euros ou 20 euros forem significado que eu me privei de alguma coisa e que eu transformo isso em generosidade, muito melhor, e aí sim é o verdadeiro sentido da renúncia quaresmal. É algo que eu de facto renunciei durante o tempo de quaresma e o transformo em gesto de amor para com o outro, para com a humanidade, para com o bem do próximo.
Penso que algumas pessoas se reconheceram um bocadinho nisto. Há uns tempos, entre colegas, uma dizia assim “se me virem mexer em café agora na quaresma, gritem comigo que eu posso me esquecer, que eu gosto tanto de café que essa vai ser a minha renúncia”.
É verdade, às vezes são coisas tão simples mas que às vezes também é um sinal de marcarmos também este tempo de forma diferente.
Pe. Paulo Franco (RR)
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